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Perfil falso na Wikipedia é citado em decisão judicial e trabalho acadêmico

on ter, 23/02/2016 - 07:50
terça-feira, 23 Fevereiro, 2016 - 08:00
Jurista, professor de Direito, amigo de Chico Buarque e inspirador do famoso "Samba de Orly", Carlos Bandeirense Mirandópolis é citado em trabalho acadêmico, documentário e até decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ). O problema é que ele não existe. “Nasceu” no Wikipedia em 2010 quando dois advogados de São Paulo decidiram criar um perfil falso para pregar uma peça em um estagiário.
 
Desde então, o conteúdo do perfil bem elaborado, que traz fotos e detalhes biográficos, se espalhou pela internet, e o personagem passou a ser mencionado como se, de fato, existisse. No Wikipedia, Carlos Bandeirense Mirandópolis é apresentado como catedrático da Faculdade de Direito da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo. Foi perseguido durante a ditadura militar (1964-1985) e se exilou em Paris.
 
Segundo a enciclopédia virtual, na Europa, o jurista fictício conheceu Chico Buarque de Hollanda e inspirou o compositor na música "Samba de Orly", uma parceria entre o próprio Chico, Toquinho e Vinícius de Moraes.
“Segundo ele [Chico Buarque], a composição de Mirandópolis era muito mais bela, porém este nunca permitiu que fosse gravada, pois não queria perpetuar na partitura a tristeza do exílio!", diz o texto, com toque de poético.
 
Mas a assessoria de Chico Buarque disse que o compositor não conhece o jurista. A PUC-SP informou que nunca teve em seus quadros um professor com o nome de Carlos Bandeirense Mirandópolis.
 
O texto do Wikipedia não para por aí. Também diz que o jurista fictício retornou ao Brasil na década de 1980 e atuou ativamente no comício das Diretas Já. Essa participação que nunca existiu é citada em uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, de 10 de novembro de 2014.
 
Mirandópolis é mencionado pela relatora de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) que pedia a derrubada da lei estadual que proibiu o uso de máscaras em manifestações.
A desembargadora Nilza Bittar negou o pedido para declarar a lei inconstitucional e destacou, no voto, que Carlos Bandeirense Mirandópolis não usou máscara quando participou do comício das Diretas Já, assim como personalidades como Ulysses Guimarães, Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso.
 
O falso jurista também aparece em uma trabalho acadêmico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul sobre produções artísticas censuradas na ditadura militar. A estudante do curso de arquivologia menciona que Chico Buarque se tornou amigo de Mirandópolis, em viagem à França. O jurista também é citado em um documentário sobre as Diretas Já e em diversos outros sites sobre a ditadura militar e a redemocratização.
 
A invenção
Os “criadores” de Carlos Bandeirense Mirandópolis, os advogados Vitor Nóbrega Luccas e Daniel, contaram que perceberam uma “dinâmica” entre os estagiários de usar informações da internet para fazer as pesquisas jurídicas.
Decidiram, então, pregar uma peça e mandaram que um dos jovens fizesse uma pesquisa sobre a teoria da Oferta Pública de Associação, que não existe.
 
Para dar veracidade à história, criaram o perfil de Mirandópolis, que seria o autor da tese.  “A ideia veio de uma experiência com um estagiário que eu e o Vitor tivemos e a gente tinha identificado nele uma dificuldade em fazer pesquisa. Particularmente, por ele acreditar em tudo que aparecia na internet. Aí a gente resolveu criar esse personagem e fazer essa experiência didática com ele”, disse Daniel Tavela.
 
O que os advogados não esperavam era que o estagiário não seria o único a “cair" na brincadeira.
Vitor Nóbrega diz que viu com “surpresa” a citação a Carlos Bandeirense Mirandópolis em uma decisão judicial.
 
“A coisa tomou uma proporção que a gente nunca imaginava. Eu esperava aparecer em alguns blogs, mas não em uma fonte mais séria. Eu gargalhei. Mas, se é engraçado por um lado, é triste por outro, porque as pessoas não estão usando a internet corretamente”, afirmou o advogado.
 
Especialistas
O professor Gilberto Lacerda Santos, da UnB (Universidade de Brasília), diz que o episódio mostra que a sociedade ainda não aprendeu a usar as informações disponíveis na rede.
 
“Nós estamos ainda tateando essas possibilidades novas e esses problemas, essas situações problemáticas que aparecem aqui e ali só revelam a fragilidade da nossa educação básica. Competiria às pessoas, a nós cidadãos dessa sociedade tecnológica, desenvolver mecanismos, estratégias, habilidades pra que saibamos separar o joio do trigo”, afirmou.
 
O professor Ronaldo Lemos, do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro, diz que a internet é um instrumento importante de pesquisa e comunicação. Mas ressalta que é preciso “desconfiar sempre” e checar as informações.
 
“A rede é assim, ela vai continuar assim e não há muito o que a gente possa fazer para mudar isso. O que a gente tem que mudar é a gente poder checar a origem dos fatos, checar a origem das informações. E não ter aquilo que está na rede, só pelo fato de estar postado na internet, como verdadeiro”, afirmou.
 
“A gente tem que fazer algumas perguntas: quem escreveu essa informação? Quem confirma essa informação? Ela está presente em outras fontes também? É algo que é reconhecido por exemplo, por instituições cientificas? É fundamental que essa educação para a mídia esteja presente na cabeça das pessoas”, disse.

G1